Biografia de Um Morto
Parte 1:
Dizem que quando se morre se vê uma luz branca no fundo de um túnel. Não foi isso que me aconteceu.
Quando morri, lembro-me muito bem, não havia luz devido a um corte de energia numa das fases da casa onde estava. Portanto, estava escuro como breu e a minha mãe tinha ido procurar uns cotos para acender.
Lembro-me muito bem.
Estava sentado na mesa da cozinha a aguardar o jantar. Lembro-me que era Inverno e que o mar se fazia ouvir nas suas constantes “estaladas” na praia. Estava rabiosa.
A minha mãe mal saberia que na procura do coto não mais veria o filho com vida.
Já velha e eu solteirão como poderíamos adivinhar que a genética estava prestes a fazer das suas, pois claro.
O meu pai não estava. Andava bem longe no mar. Apesar de velho continuava agarrado às ondas, sempre o azul infinito que o enfeitiçava, que o arrastava, muitas vezes para a amurada do grande barco.
Mas, na cozinha, sentando na velha mesa senti um aperto no coração e sem forças imediatas ou mesmo num último grito pela minha mãe, tombei para o lado atingindo o chão com alguma força, nem sei quanta porque, na verdade, já estava morto.
Subi de imediato a outra dimensão e parti. Já não via a escuridão, nem sentia o banco onde segundos antes estava sentado.
Jazia, agora, no chão, ancorado na velha carpete da cozinha, sozinho, inerte e a arrefecer.
*
A questão da luz não sei, como disse, se existe, agora que um morto ouve, lá isso ouve. Não duvidem.
Ouve, porque eu ouvi os gritos estridentes da minha mãe a chamar o meu nome, a clamar aos céus, já que os vizinhos só pouco depois é que acudiram, para que eu não tivesse partido. Como se um dia não tivéssemos todos de partir, de deixar esta vida terrena e seguir um caminho que até ali desconhecia.
A confusão era de tal ordem que, mesmo depois de morto, me começou a doer a cabeça!
Percebi que a Morte me reclamou e que as mulheres que se juntaram na casa da minha mãe prantavam de tal forma afinada que mais pareciam o Coro de Santo Amaro de Oeiras.
Bom, a situação lá em baixo era esta; confusa, completamente descontrolada, plena de abraços fortes de conforto e de dicas, como por exemplo a típica, “vai chamar o Silvino”, “uma urna bonita porque ele merece, coitadinho” …etc. e tal.
*
Cá em cima, ainda a poucos metros de distância da minha morte, eu já estava naquela transição entre o corpo e a alma.
Na verdade, sentia-me mais leve como nunca me tinha sentido. A viagem era longa – pensei – mas não dolorosa. Aliás, a dor que me deu desapareceu num ápice e agora só sentia um sopro a empurrar-me para cima. Não fosse o vento que vinha de Noroeste e, de certeza, não tinha andado aos ziguezagues até chegar ao meu destino. O que consegui, uns três dias depois.
*
Quando cheguei não vi nada do que se falava lá em baixo. Nem portões brancos, nem fechaduras, nem o São Pedro, ninguém e nada de nada. Estava, sim, um grupo de pessoas sentadas, calma e tranquilamente, a jogar às cartas e em amena cavaqueira.
Mais ao longe, outro grupo de pessoas ocupavam-se com as mais variadas actividades recreativas. Nada de trabalho. Isso já todos, pelo menos os mais velhos, o tinham feito, aquando da sua presença no Planeta Azul e Cinzento.
Confesso que fiquei algo confuso sobre o rumo que haveria de tomar e segui livremente pelo caminho central. Havia ali um género de uma avenida que depois entroncava em imensas ruas paralelas. Fiquei com a ideia que o “Além” era muito geométrico.
Aliás, pouco mais tarde, ainda não tinham feito duas horas da minha chegada verifiquei por um Outdoor que a planta do “Além” era mesmo em linha recta, nem uma curva para “matar” a monotonia!
E fui caminhando, e caminhando, até que encontrei alguém que não me era estranho. Estavam lá todos, desde os mais antigos da Humanidade até aos mais recentes, neste caso eu. O mais maçarico dos mortos, pelo menos até chegar o próximo ser morto, o que não deveria demorar muito. Foi então que percebi porque não havia portão e muito menos porteiro.
*
Bom, como estava a dizer, lá encontrei alguém que me era familiar – imagino por onde andavam os outros – e dirigi-me a esse morto.
- Você não é o meu avô?!
Virando-se, olhou para mim, e atónito disse: Quem, eu?
- Sim, o meu avô Belarmino.
- Não, Sou alguma vez o teu avô!
- Mas é igual à pessoa que eu vi numas fotos lá em baixo!?
- Mau! Mas quais fotos?
Convém dizer, para os que chegaram até aqui nesta estranha biografia, que nem o meu avô me conheceu a mim, nem eu a ele, uma vez que ele morreu cerca de um ano antes de eu ter nascido. Portanto, era bem provável que ele não tivesse visto qualquer foto minha, uma vez que não havia!
- Tem razão.
- O senhor meu avô não me conhece porque nunca me conheceu. Sabe que a minha mãe é que me mostrava as fotos e me falava de si. Por isso é que o reconheci.
- Mas quem és tu, morto?
- Sou o filho da Ermelinda e do Tonho Macaréo.
- Tu és o filho da minha Ermelinda?
- Sim. Eu sou o mais velho. A minha irmã ainda está lá em baixo.
- Tens uma irmã?
- Avô. Você tem uma carrada de netos, bisnetos e até trinetos. Sabe lá.
O homem, ou antes o outro morto, ia morrendo outra vez com tanta surpresa.
Sentei-me à sua beira e comecei a contar-lhe, muito devagarinho, a história depois da sua morte.
Não deixa de ser irónico que eu tenha andado toda uma vida a saber como ele era, e agora era eu quem tinha a palavra, a função de lhe dar a conhecer o que aconteceu após a sua partida.
Mas, como tudo na vida, também na morte e no Além existe um tempo e um espaço, sendo que a hora da confraternização iria terminar em breve.
Anunciada pelos mortos mais velhos, os do Paleolítico, tínhamos de recolher à nossa nuvem que, no fundo, não eram mais que zonas de descanso individual, localizadas ao longo das ruas paralelas à avenida principal.
A minha ficava na rua PT/NZ/NZ e era uma rua tão comprida que não se vislumbrava o fim. Parecia ser mais estreita, terminando, pelo menos foi a impressão que tive, numa forma afunilada e efectivamente branca. Ali tudo era branco e azul-celeste, menos os telhados das camaratas.
Continua...