A vida, aos bocadinhos, de Eduardo
Nota prévia:
Antes de apresentar o primeiro trecho deste texto, originalmente chamado de Reflexões e Introspecções a esmo, permitam-me informar que qualquer texto que aqui coloque, na categoria de Ensaios, está aberto a contributos externos. Por isso, sintam-se à vontade para colaborar.
Este começou a ser escrito no dia 07 de Novembro de 2013, já lá vai uma década. Este, assim como o "A dois passos" são projectos que pretendo levar até ao fim, dependendo do tempo e da inspiração.
Enquanto vai e não vai, aqui fica a primeira parte da vida de Eduardo, mas aos bocadinhos.
*
1.
O tempo - dizia o outro - corre devagar, muito devagar, assim como se entre um segundo e o outro segundo existissem vários momentos de paragem. Se calhar tinha, ou tem, razão.
A verdade é que o Eduardo não tinha tempo. Não sabia, há muito tempo, o que era olhar despreocupadamente para a linha do horizonte, não sabia que, apesar de todo o rebuliço que lhe ia na cabeça, a vida não pára, o tempo não espera e que a sua angústia diária apenas o levava a um vazio no tempo, um limbo, um espaço oco, anti-material, nada mais.
Mas não sabia, não pensava nesse “tempo” nem por um segundo.
Interessavam-lhe mais os objectos metálicos que tinha na sua oficina, as rodas, os pneus, os carros dos clientes com o óleo para mudar. Máquinas de um tempo que não conhecia, mas que tinha de arranjar, assim sem saber quais os momentos que cada uma tinha.
Achava que um carro era, talvez com razão, o testemunho de uma vida, a vida de quem o conduzia e, assim como se fosse um cientista do tempo, tinha a absoluta convicção que os dois formavam uma unidade, uma vida, um momento, vários, muitos, segundos.
Mas esses eram os pensamentos que tinha e era com esses que queria viver, era a sua vida era o seu tempo, eram os seus momentos.
Eduardo não tinha, digamos assim, grandes preocupações. Geria a sua vida por momentos, uns atrás dos outros, tudo a seu tempo, como costumava dizer quando, nas raras vezes que frequentava o café, se encontrava com dois amigos de infância, o Tó e o Jorge.
Poucas palavras trocavam. Passavam o tempo, o pouco que dividiam, a jogar cartas, mais nada, poucas palavras, não havia tempo, as recordações de outros tempos chegavam, aos três para, sem falar, se entenderem com o olhar.
Naquele dia o Eduardo não andava lá muito em disposto, andava assim meio entorpecido, descrente talvez, mas nada de especial, era a porcaria de um pneu que ainda não tinha chegado do fornecedor e o cliente já o tinha chateado duas ou três vezes.
Isso era o pior, talvez a pior das suas preocupações, o não cumprimento dos prazos, a falha do tempo previsto, a não entrega do automóvel no tempo acordado, sob a palavra dele. Isto de depender de terceiros não era do agrado do Eduardo, preferia depender do seu tempo.
Juntou a pouca comida que levava para a oficina e no caminho ia pensando, remoendo naquela grande preocupação. Não queria chamar à atenção do fornecedor para não criar clivagens - bem falado. Por outro lado, não queria assumir a sua falta de palavra para com o cliente, mas sabia que tinha de resolver a situação.
Havia de se resolver.
Por agora pedalava na sua pasteleira, herdada do pai, a caminho do seu ninho de trabalho, o do amor sempre esteve vazio à excepção de uma paixoneta que teve, ainda nos tempos da escola primária, por uma prima.
A coisa não funcionou porque além de prima por parte da mãe o era também por parte do pai, quer isto dizer que ele era filho de um casamento entre dois primos. Portanto, fiel às suas convicções e sem tempo para pensar nestas coisas do amor, se assim se pode chamar, não a esqueceu, colocando essa paixoneta de lado apenas e só para não ter momentos de desagrado com a família, que era grande e muito próxima, já se vê.
Assim, olhava os campos sempre com atenção à estreita estrada de paralelos que faziam a sua pasteleira chiar, frutos dos longos anos que tinha e dos muitos percursos que percorrera na sua longa “vida”.
No fundo, ele e a pasteleira eram um só, uma unidade, uma equipa cúmplice do movimento temporal dos anos, meses, dias, minutos e segundos,
Mesmo quando estava na oficina a pasteleira esperava por ele, encostada a uma parede de pedra, mas com umpedaço de madeira a ampará-la para não danificar os punhos. Era assim que a queria, eterna, bonita, apesar de antiga.
Neste aspecto o Eduardo tinha razão, as coisas materiais podem não acusar os anos, assim se tratem como nos deveria tratar a vida, assim o tempo fosse para nós aquilo que é para elas, assim a morte não fosse uma certeza como é para os Homens.
Mas pronto, a vida é a vida e nas questões da morte não gostava de pensar.
Já lhe tinha morrido o pai, a mãe, os avós, apenas lhes restavam tios e os primos, entre eles, a tal prima, e o cão, o Marreco, como se chamava.
O Marreco? O Marreco vinha sempre com ele, passava o dia e a noite sempre por perto, era assim como um conselheiro, um amigo a tempo inteiro, uma companhia.
O Eduardo percebia bem os dois ditados que conhecia sobre os cães, aquele da fidelidade e o da longevidade, aquela coisa dos sete anos por cada um do homem.
- Até aqui o tempo nos coloca para trás, pensava muitas vezes. Compreender essa conta e saber que um cão com 5 anos tinha, nas contas que algum iluminado fez, afinal 35 anos, era uma chatice.
- O tempo dos cães é menor que o da bicicleta, mas maior que o nosso, pensava o Eduardo, e pensava bem, achava.
Todas estas ideias fizeram-no pensar sobre o tal tempo, aquele tempo que apenas se vê nas rugas, nos cabelos brancos, nos olhos cansados, nessas coisas da velhice, algo que ainda não lhe tinha chegado e como tal, como só tinha 30 anos, o tempo dele em relação a outros também estava desfasado.
Para casar já ia tarde, para morrer ainda era cedo...que porra de coisa, o tempo.
(continua)
Desenho: Bento Soares Dias