A Biografia de Um Morto - Parte III
(Continuação da parte II)
A verdade é que foi um dia fabuloso. Comemos e bebemos do bom e do melhor.
Depois houve música com fartura, dança e até, imaginem, um momento de Stand-Up-Comedy!
Já não me aguentava nas pernas. Não sabia que os mortos se cansavam?!
- Olha lá, disse eu, não está na hora de ir andando. Estou cansado e não me estou a sentir bem.
- Tem calma, isto agora esta ao rubro. Então queres ir embora na parte da “Rave”.
- “Rave”!? Mas qual “Rave”! Eu quero é ir embora e é já. Fica, por mim tanto se me dá, o meu problema é saltar da nuvem destes tipos para a nossa nuvem. Mas hei-me safar-me.
- Então vai. Eu vou ficar mais um “coche”.
Aos poucos fui-me afastando daquela loucura, parecia que estava tudo “aluado” e, passo-a-passo, lá fui chegando ao final da nuvem deles. Sentia que me estava a aproximar do final da nuvem, pelo que não estranhei pensar em como haveria de passar para a outra?!
- Oi, oi…, oi…, oi, puto, espera aí, não te vás embora.
Do lado da minha nuvem estava um miúdo com um drone, mas estava tão fixo nas luzes do drone que nem olhava na direção da minha nuvem. Isto fez-me questionar se o Além só tem duas dimensões: vertical e horizontal. Também pensei se os sons se propagam como na Terra.
Lembrei-me que talvez a segunda não fosse possível acontecer no Além, posto que tudo era gasoso, não existia o elemento físico, material.
- Que chatice! Ó miúdo, oi..., oi…, então, não estás a ver que estou “empachado”.
Por sorte, e sem grande explicação, o drone ficou sem bateria e caiu na nuvem onde eu estava.
- Bem feito. É para não teres a mania que és esperto.
- Ó senhor, pode-me enviar o meu drone?
- Estás a falar comigo? (tudo isto aos berros).
- Sim, sim. Por favor.
- Eu dou-te o drone, mas tens de me ajudar a passar para essa nuvem.
O miúdo, esperto como o alho, gritou.
- Sem problema. Pode pendurar-se no drone e eu trago-o até mim.
- Tem razão. Então se somos como a gasosa, não peso nada, digo eu e deixo a pergunta para os físicos.
Agarrei no drone com cuidado para não interferir com as quatro hélices e lá fui até à outra nuvem.
- Obrigado, miúdo. Como te chamas?
- Gertúlio.
- Gertúlio!? Mas que raio de nome.
- O meu pai disse-me que era o nome do meu bisavô. Eu já o vi aqui no Além. Está sempre naquela mesa junto à entrada a jogar às cartas com o resto do pessoal, os mais antigos desta nuvem.
- Sei, sei. Queres ver que joga com o meu avô!
- Bom, vamos mas é para as camaratas que o teu pai já deve estar preocupado e eu estou cansado. Preciso de dormir.
- Senhor, o meu pai foi à pesca. Ele gosta de ir pescar ao rolete à noite. De quando em vez traz uns robalotes, ou uns pregados. Ele diz que o problema é arranjar isca.
- E então, como é que ele resolve esse problema.
- Conseguiu arranjar isca vinda da Terra, lá do sítio onde viemos. Os mortos é que trazem a isca.
- A sério? E como é que ele teve essa ideia?
- Não foi ele que teve a ideia. Até ficou surpreendido e passou várias noites sem dormir.
- Então?
- O fulano que tem a loja de produtos de pesca lá na terra, não se esqueceu da dívida que tinha para com o meu pai. O meu pai salvou-lhe a vida uma vez e o senhor da loja de pesca continua a achar que tem uma dívida eterna. Vai na volta e quando sabe que alguém morreu, vai ao velório e mete um papelinho que diz sempre a mesma coisa.
- Tonho Alberto, aqui vai mais um pacote com isca. Um abraço de eterna saudade.
João Chumbada.
- O teu pai chama-se Tonho Alberto?
- Sim.
- Olha que estória tão engraçada. O bem que fazemos em vida parece que se prolonga na morte. Antes assim, Gertúlio, antes assim.