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Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

O cemitério

21.08.24 | Bento Soares Dias

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No cemitério da minha santa terrinha, por motivos de falta de planeamento, já não cabe um único morto. 

Vai na volta e o executivo municipal começa a colocar papelinhos e editais a avisar que caso “os concessionários não sejam conhecidos ou residam em parte incerta e não exerçam os seus direitos por um período de dez anos, nem se apresentem a reivindica-los dentro do prazo de sessenta dias úteis, depois de citados por meio de editos publicados em dois jornais mais lidos no Município e afixados nos lugares de estilo”.

E pronto.

Acontece que muitas campas não estão abandonadas, e outras são autênticas peças de arte cemiterial. Também acontece que muitos familiares que vivam longe, no estrangeiro ou que tenham falecido fora desta santa terrinha, não sabem porque não conhecem os jornais do município, ou nem conseguem aceder aos editais. Muito menos poderão saber o que são “lugares de estilo”. Eu por acaso sei!!

Não sabendo não reagem, não cumprem. 

É então que acontece o impensável. Lá vão as ossadas, nem digo para onde e, de uma morte para a outra, o covato é ocupado por outro morto.

É no que dão os erros urbanísticos, posto que no alinhamento sul do velho cemitério resolveram autorizar um edifício de habitação coletiva com um número enorme de frações impedindo, dessa forma, a expansão da necrópole para sul, já que para Norte não é possível, há muitos séculos. Para nascente existe uma estrada e para poente uma arriba.

Não havendo hipótese, substituam-se os mortos, chorem os familiares no dia em forem visitar os seus entes querido e já não lá estiverem as fotografias, os nomes...enfim a memória física do morto. 

Mas, digo eu, o problema maior do cemitério e dos mortos que ainda lá estão é a vista que este tem sobre o mar.

E mais não digo...

A Biografia de Um Morto - Parte III

17.08.24 | Bento Soares Dias

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(Continuação da parte II)

A verdade é que foi um dia fabuloso. Comemos e bebemos do bom e do melhor.

Depois houve música com fartura, dança e até, imaginem, um momento de Stand-Up-Comedy!

Já não me aguentava nas pernas. Não sabia que os mortos se cansavam?!

- Olha lá, disse eu, não está na hora de ir andando. Estou cansado e não me estou a sentir bem.

- Tem calma, isto agora esta ao rubro. Então queres ir embora na parte da “Rave”.

- “Rave”!? Mas qual “Rave”! Eu quero é ir embora e é já. Fica, por mim tanto se me dá, o meu problema é saltar da nuvem destes tipos para a nossa nuvem. Mas hei-me safar-me.

- Então vai. Eu vou ficar mais um “coche”.

Aos poucos fui-me afastando daquela loucura, parecia que estava tudo “aluado” e, passo-a-passo, lá fui chegando ao final da nuvem deles. Sentia que me estava a aproximar do final da nuvem, pelo que não estranhei pensar em como haveria de passar para a outra?!

- Oi, oi…, oi…, oi, puto, espera aí, não te vás embora.

Do lado da minha nuvem estava um miúdo com um drone, mas estava tão fixo nas luzes do drone que nem olhava na direção da minha nuvem. Isto fez-me questionar se o Além só tem duas dimensões: vertical e horizontal. Também pensei se os sons se propagam como na Terra.

Lembrei-me que talvez a segunda não fosse possível acontecer no Além, posto que tudo era gasoso, não existia o elemento físico, material.

- Que chatice! Ó miúdo, oi..., oi…, então, não estás a ver que estou “empachado”.

Por sorte, e sem grande explicação, o drone ficou sem bateria e caiu na nuvem onde eu estava.

- Bem feito. É para não teres a mania que és esperto.

- Ó senhor, pode-me enviar o meu drone?

- Estás a falar comigo? (tudo isto aos berros).

- Sim, sim. Por favor.

- Eu dou-te o drone, mas tens de me ajudar a passar para essa nuvem.

O miúdo, esperto como o alho, gritou.

- Sem problema. Pode pendurar-se no drone e eu trago-o até mim.

- Tem razão. Então se somos como a gasosa, não peso nada, digo eu e deixo a pergunta para os físicos.

Agarrei no drone com cuidado para não interferir com as quatro hélices e lá fui até à outra nuvem.

- Obrigado, miúdo. Como te chamas?

- Gertúlio.

- Gertúlio!? Mas que raio de nome.

- O meu pai disse-me que era o nome do meu bisavô. Eu já o vi aqui no Além. Está sempre naquela mesa junto à entrada a jogar às cartas com o resto do pessoal, os mais antigos desta nuvem.

- Sei, sei. Queres ver que joga com o meu avô!

- Bom, vamos mas é para as camaratas que o teu pai já deve estar preocupado e eu estou cansado. Preciso de dormir.

- Senhor, o meu pai foi à pesca. Ele gosta de ir pescar ao rolete à noite. De quando em vez traz uns robalotes, ou uns pregados. Ele diz que o problema é arranjar isca.

- E então, como é que ele resolve esse problema.

- Conseguiu arranjar isca vinda da Terra, lá do sítio onde viemos. Os mortos é que trazem a isca.

- A sério? E como é que ele teve essa ideia?

- Não foi ele que teve a ideia. Até ficou surpreendido e passou várias noites sem dormir.

- Então?

- O fulano que tem a loja de produtos de pesca lá na terra, não se esqueceu da dívida que tinha para com o meu pai. O meu pai salvou-lhe a vida uma vez e o senhor da loja de pesca continua a achar que tem uma dívida eterna. Vai na volta e quando sabe que alguém morreu, vai ao velório e mete um papelinho que diz sempre a mesma coisa.

- Tonho Alberto, aqui vai mais um pacote com isca. Um abraço de eterna saudade.

João Chumbada.

- O teu pai chama-se Tonho Alberto?

- Sim.

- Olha que estória tão engraçada. O bem que fazemos em vida parece que se prolonga na morte. Antes assim, Gertúlio, antes assim.

Sem título, sem conteúdo

17.08.24 | Bento Soares Dias

Por vezes pergunto-me porque ando a escrever, seja aqui, seja no bloco de notas, seja nos meus pensamentos.

Dizem que faz bem à ansiedade, que alivia, que liberta.

Penso que pode ter esse efeito, diria no imediato, mas depois lá volta a realidade. E essa, mesmo amigos, é o que fica entre o mundo das ilusões e o das coisas palpáveis.

E quando pensas que tens muitos amigos a quem recorrer para combater essa solidão, notas que cada um "sabe de si e Deus de todos", não estão lá para ti como já estiveste para eles.

É a vida...

 

 

 

 

 

Diário do meu Alentejo

14.08.24 | Bento Soares Dias

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Hoje percebi que as minhas janelas se fecharam com a força de um tornado.

Aquele bater seco da madeira, e o som dos vidros a saltar das velhas janelas, permaneceu na minha memória, apesar da embriaguez da canícula que esmorecia todo o meu Ser. 

Debaixo da mesa olhava para o que aconteceu procurando uma explicação...

Estava na minha casa isolada, bem perto da fronteira com Espanha - por ali não passa viv'alma!! - a ouvir uma das minhas músicas preferida e a ler, pela enesésima vez, a "Eternidade", de Ferreira de Castro.

Ainda "arrelampado" por aquele acontecimento, olhei para a janela aberta e sem vidros.

O sol, na sua vaidade enganadora, banhou-me a face, cobrindo o manto de devastação do velho monte alentejano com o dourado, também enganador, do seu sorriso.

Fui à porta e banhei-me nos rasgos solares que perfuravam as nuvens negras.

Aquele céu alentejano, de dia ou de noite, é incomparável.

As janelas abriram-se e os vidros estilhaçaram, mas eu ganhei mais uma batalha e permaneci solitário na minha casa no Alentejo, até agora. 

Quero ser sepultado debaixo desta terra quente que tanto amolece os corações e as almas.

 

 

 

Depende de mim…por favor.

13.08.24 | Bento Soares Dias

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Depende de mim…por favor.

 

Jura que voltas à tardinha.

Diz que me amas para sempre,

Mesmo nos estados inconscientes da tua alma.

Deixa que a minha lembrança e saudade sejam o teu alimento ao minuto,

Que sofras de fome crónica, de sede pelo meu amor.

Jura, por fim, que na separação final,

A tua alma se unirá à minha,

Sem importar para onde vamos.

 

Depois da partida, a solidão

04.08.24 | Bento Soares Dias

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O vento agreste que se fazia sentir crestava-lhe a face já queimada de outros ventos de outras maresias.

Pensativo, caminhava pelo paredão, como se quisesse recolher naqueles pensamentos a solução para os seus problemas, como se o ar do mar e o vento lhe pudessem limpar todas as sismas que lhe faziam sentir-se pesado, sem vontade para continuar a vida que tinha agora.

Desde aquele dia que a sua vida se tinha transformado num vazio.

A morte repentina da mulher fê-lo repensar toda a sua existência, toda a sua relação familiar e social.

Encontrava-se agora num período de experiência, de transição.

A sua casa não é a mesma, as coisas não estão nos lugares onde a Maria religiosamente as colocava durante 45 anos de casamento, a roupa lavada e passada a ferro já não tinha o mesmo tratamento, o mesmo cheiro.

Os risos e choros tinham abandonado de vez aquela morada, nem ele conseguia devolver o choro à casa, tinham-se-lhe secado as lágrimas pelo sal do mar.

Passava um mês desde que Maria morreu, um mês que mais parece uma eternidade, uma enorme eternidade. Os dias não passam, a vida não lhe sorri, as noites são frias na cama, sozinho tudo é frio, até os seus pensamentos e recordações são frios, apenas as fotografias e as roupas da Maria lhe aquecem ainda um pouco o coração e a alma.

Abandonar a sua casa nunca lhe tinha passado pela cabeça, nem pensar, a casa onde casou, onde viveu todos aqueles anos com a Maria, local de alegrias de tristezas de confidências, isso não ia querer, ou antes achava que este pensamento só lhe vinha à cabeça por não ter nada para fazer e, por outro lado, por não ter ninguém com quem conversar.

Os filhos tinham a sua vida, viviam na mesma terra que ele, mas nunca, desde a morte da mãe, o convidaram para ir viver com eles. Ele também não queria isso, casamento apartamento, apenas reclama uma visita de vez em quando, um convite para um almoço ou mesmo um lanche.

Não tem netos, era um gosto que tinha e uma esperança que acalentava, talvez a sua vida tivesse mais um sentido mais um rumo.

Mas não pode esperar pelo futuro e pela vontade dos filhos, resta-lhe apenas esperar que o tempo seja o suficiente para os ver. 

Resta-lhe apenas esperar que a morte, calma e lentamente, lhe invada o espaço que hoje habita e o leve serenamente para junto da sua Maria.

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