Ao sair, não deixou de dizer, em alta voz aos restantes. Impugnem isto, façam-no em defesa da honra. Isto é uma vergonha.
O marreco ao ouvir tal palavra, advertiu o amigo e secretário que tal palavra não era bem-vinda na assembleia, visto que esta representava a comunidade canina.
O pulgas, para não se chatear, rematou: - A comunidade canina? Mas qual comunidade canina? A comunidade canina está toda aqui, por acaso? Vê mas é se acabas com esta palhaça. Eu já nem quero ouvir falar mais de namoros e casamentos entre humanos.
Naturalmente que o marreco e, principalmente, o negrão perceberam a atitude do pulgas. Os outros nem por isso, a não ser do seu já mencionado mau feitio.
Mas, de todos, o que ficou mais satisfeito foi o trovão, – a pom-pom já não me escapa, pensou.
A saída do pulgas e a entrada da pom-pom retiraram qualquer hipótese de continuidade da assembleia.
Era notório o desagrado, o tempo perdido e o desinteresse pelo problema do dono do marreco.
A única coisa positiva naquilo tudo, era a sombra onde estavam deitados uns, sentados outros, e para o trovão a possibilidade, muito rara, de se esfregar naquele monte de pelo branco e a cheirar a perfume.
Não restou, perante os factos ali passados, ao marreco que desse por terminada a assembleia.
Quando o fez já só restavam três ou quatro canídeos. Os outros tinham seguido o pulgas.
O marreco seguiu com o negrão e o trovão foi tentar a sorte com a pom-pom.
O Eduardo, estando mesmo ao lado daquele ajuntamento de cães, nem por sombras pensou que o assunto seria em discussão seria sobre ele.
Tinha estado ocupado com dois clientes que apareceram por lá, um deles era o dono do trovão, a tratar de assuntos da oficina.
Na verdade, nem o calor o distraiu, nem a prima apareceu nos seus pensamentos, quanto mais as tropelias do marreco e seus associados. Mas estranhou aquele ajuntamento.
Mais logo, quando chegasse a casa, haveria de notar, ou não, alguma atitude estranha no marreco.
Passado pouco mais de uma hora fechou o portão da oficina e dirigiu-se a casa.
No caminho ia pensando na questão do ajuntamento dos canídeos. Se aquilo se repetisse não teria outra hipótese do que falar com os donos. Não queria ajuntamentos junto à oficina.
Não era por dele, mas porque existiam clientes que não gostava de cães desconhecidos. Tinham medo das mordidelas alheias.
Aliás, há tempos o marreco ia mordendo o filho de um cliente passante – daqueles que estão de viagem e se vêm obrigados a parar por algum problema mecânico na viatura – e o resultado foi o não pagamento do serviço em troca do susto do miúdo que ficou branco como a cal, esgotando os sacos lacrimais.
Além disso ainda teve de ouvir as pragas da mãe do miúdo e a quase agressão do pai. Se lhe tivesse dado um estalo tinha ido parar à Vestiaria.
- Não vou permitir isto, pensou.
Pedalando e pedalando, a bicicleta parecia que tinha gps, foi direitinho ao café.
O Eduardo não percebeu onde tinha perdido a noção do tempo e do espaço, mas não se importou.
Entrou, sentou-se e o dono da pintarolas lá veio com um belo copo de vinho tinto, um naco de pão e um pedaço de queijo seco.
-Muito obrigado. Agradeceu o Eduardo.
Ali esteve, até que decidiu sair e ir até casa. No fundo estava preocupado com o marreco que hoje não tinha parado junto a ele. Isso era algo que não era normal, mas ele sabia porquê.
A porta abriu-se com o habitual barulho das dobradiças, já velhas e cansadas e, nesse instante, já o marreco estava junto à porta, atento e com um olhar absolutamente normal, o rabo no ar e aquele baixar de cabeça, como quem pede a habitual festinha.
Eduardo ficou confuso.
Se calhar não se passava nada. O marreco não parecia acusar qualquer problema, conhecia-o muito bem.
Sendo assim, talvez aquilo tenha sido apenas uma reunião canina sobre assuntos lhes deveriam dizer respeito, nada mais.
Foi em direcção à zona da cozinha e deitou um copo com água na malga do marreco. Sentaram-se os dois junto lareira.
O Eduardo na sua habitual cadeira e o marreco, depois de saciar a sede, lá se deitou com meio corpo em cima dos pés do dono.
Eduardo, quase de imediato, adormeceu, naquelas sonolências tão rápidas que não avisam.
O marreco também estava quase a cair na simpatia de um belo sono quando – os animais têm os sentidos mais apurados que nós, nunca se esqueçam – algo de estranho parecia aproximar-se da porta.
Como não tinha hipótese de abrir a porta, foi calmamente até à outra porta que dava para as traseiras, para o quintal, e num instante rodeou a casa e lá encontrou o que lhe parecia ter sentido. Era o pulgas.
- o que estás aqui a fazer, não te disse que as conversas não podiam ser aqui!
- tem calma amigo marreco, eu vim porque não quero estar chateado contigo.
- achas bem o que disseste, a forma como me abandonaste?
- não, não acho. Não fui correcto contigo, mas já não dava para aturar aquele cão, porra!!!
- esse é um problema teu e dele, têm de o resolver, isto apesar da decisão ser da pom-pom.
- Já lhe pediste desculpa? Questionou o marreco.
- Já, mas ele não aceitou.
- Não te preocupes. Pedir desculpa é uma atitude nobre, não aceitar só demonstra o caráter do outro.
Um silêncio inundou aquela parte da casa, após um “xiu, tá calado”, “não digas nada”. O Eduardo está ali na sala, a dormitar, avisou o marreco.
- Tá bem marra, tá bem.
Nem um pio saiu da boca do pulgas, o que era uma grande conquista.
PS( A história, breve história, está quase a terminar. Tenham paciência, para quem lê, que o final vai ser hilariante. A propósito, não sei escrever coisas "lindas")