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Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte XI

10.04.24 | Bento Soares Dias

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A situação exigia calma e muita discrição.

O marreco não queria, nem por sonhos, que o Eduardo desconfiasse.

- Olha pulgas, vamos combinar mais uma reunião.

- Tá bem.

- Mas desta vez tem de ser de noite. Estava a pensar reunir junto ao ribeiro. Ali não passa ninguém de dia quanto mais de noite.

- Ó marreco, grande ideia, grande ideia. O que queres que faça?

- Tu?

- Bom (ainda pensou como haveria de dizer ao canídeo mais falador da terra, uma autêntica língua de trapo) vais apenas falar com os amigos que estiveram na última reunião, ouviste?

- Sim, sim, marreco, tu é que mandas.

A baba saia em jacto pelos cantos da boca só de acreditar que o marreco estava a confiar-lhe uma tarefa. Nem queria acreditar.

 

O pulgas, como todos sabem, não consegue estar quieto e muito menos calado.

Na verdade, não teve uma infância fácil.

Os seus progenitores não se entendiam e a relação não durou após a primeira ninhada de oito cachorrinhos. Dois morreram, quatro foram parar ao canil e só ele e o irmão ficaram ao abandono.

O irmão teve uma sorte dos diabos. Andava deambulando na rua e uma freira que ia a caminho do seu mosteiro, agarrou-o e levou-o.

Nunca mais o viu.

- Esse gajo é que está bem, pensou.

- Deve estar gordo como um texugo, bem tratado, raios partam a minha sorte.

Mal sabia que o irmão, o xocas, tinha morrido atropelado por um tractor numa das poucas vezes que passou o portão do mosteiro!

 

- Combinado marreco, disse depois deste momento de recordação e dor.

- Agora não te esqueças, pulgas, de meter a boca no trombone. Olha que te tiro os dentes com um alicate!

- Tá descansado. A minha boca é um túmulo.

- Agora vai-te embora e nada de dar à língua.

 

O pulgas desatou a correr de tal forma que um pingo da baba foi parar ao focinho do marreco! O marreco, enojado, foi a correr para a malga de água e lá lavou o focinho! – Raios partam o pulgas, chiça.

Com tanto barulho que fez, acordou o Eduardo.

- Então marreco? O que se passa.

- Nada, estava a beber água. Não sei o que se passa comigo, ando cheio de sede e até tenho suores frios.

- Estás doente?

- Não. Estou bem. Apenas umas ansiedades que me têm atacado ultimamente. Sinto-me estranho, agitado e meio sem forças.

- Tem calma contigo marreco. Olha que a vida não é para desperdiçar com coisas que não importam. Dizia o roto ao nu, olha como andas tu.

- Vou dormir, disse o Eduardo. Ficas aqui ou vens?

- Fico aqui, disse o marreco, mas com a impressão que aquela frase poderia significar que o Eduardo já desconfiava de alguma coisa.

 

Imagem: https://www.caotinhodolabrador.com/noticias/externa/2020/cachorro-cheirando-outro-por-que-os-caes-fazem-isso 

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte X

07.04.24 | Bento Soares Dias

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Ao sair, não deixou de dizer, em alta voz aos restantes. Impugnem isto, façam-no em defesa da honra. Isto é uma vergonha.

O marreco ao ouvir tal palavra, advertiu o amigo e secretário que tal palavra não era bem-vinda na assembleia, visto que esta representava a comunidade canina.

O pulgas, para não se chatear, rematou: - A comunidade canina? Mas qual comunidade canina? A comunidade canina está toda aqui, por acaso? Vê mas é se acabas com esta palhaça. Eu já nem quero ouvir falar mais de namoros e casamentos entre humanos.

Naturalmente que o marreco e, principalmente, o negrão perceberam a atitude do pulgas. Os outros nem por isso, a não ser do seu já mencionado mau feitio.

Mas, de todos, o que ficou mais satisfeito foi o trovão, – a pom-pom já não me escapa, pensou.

A saída do pulgas e a entrada da pom-pom retiraram qualquer hipótese de continuidade da assembleia.

Era notório o desagrado, o tempo perdido e o desinteresse pelo problema do dono do marreco.

A única coisa positiva naquilo tudo, era a sombra onde estavam deitados uns, sentados outros, e para o trovão a possibilidade, muito rara, de se esfregar naquele monte de pelo branco e a cheirar a perfume.

Não restou, perante os factos ali passados, ao marreco que desse por terminada a assembleia.

Quando o fez já só restavam três ou quatro canídeos. Os outros tinham seguido o pulgas.

O marreco seguiu com o negrão e o trovão foi tentar a sorte com a pom-pom.

O Eduardo, estando mesmo ao lado daquele ajuntamento de cães, nem por sombras pensou que o assunto seria em discussão seria sobre ele.

Tinha estado ocupado com dois clientes que apareceram por lá, um deles era o dono do trovão, a tratar de assuntos da oficina.

Na verdade, nem o calor o distraiu, nem a prima apareceu nos seus pensamentos, quanto mais as tropelias do marreco e seus associados. Mas estranhou aquele ajuntamento.

Mais logo, quando chegasse a casa, haveria de notar, ou não, alguma atitude estranha no marreco.

Passado pouco mais de uma hora fechou o portão da oficina e dirigiu-se a casa.

No caminho ia pensando na questão do ajuntamento dos canídeos. Se aquilo se repetisse não teria outra hipótese do que falar com os donos. Não queria ajuntamentos junto à oficina.

Não era por dele, mas porque existiam clientes que não gostava de cães desconhecidos. Tinham medo das mordidelas alheias.

Aliás, há tempos o marreco ia mordendo o filho de um cliente passante – daqueles que estão de viagem e se vêm obrigados a parar por algum problema mecânico na viatura – e o resultado foi o não pagamento do serviço em troca do susto do miúdo que ficou branco como a cal, esgotando os sacos lacrimais.

Além disso ainda teve de ouvir as pragas da mãe do miúdo e a quase agressão do pai. Se lhe tivesse dado um estalo tinha ido parar à Vestiaria.

- Não vou permitir isto, pensou.

Pedalando e pedalando, a bicicleta parecia que tinha gps, foi direitinho ao café.

O Eduardo não percebeu onde tinha perdido a noção do tempo e do espaço, mas não se importou.

Entrou, sentou-se e o dono da pintarolas lá veio com um belo copo de vinho tinto, um naco de pão e um pedaço de queijo seco.

-Muito obrigado. Agradeceu o Eduardo.

Ali esteve, até que decidiu sair e ir até casa. No fundo estava preocupado com o marreco que hoje não tinha parado junto a ele. Isso era algo que não era normal, mas ele sabia porquê.

A porta abriu-se com o habitual barulho das dobradiças, já velhas e cansadas e, nesse instante, já o marreco estava junto à porta, atento e com um olhar absolutamente normal, o rabo no ar e aquele baixar de cabeça, como quem pede a habitual festinha.

Eduardo ficou confuso.

Se calhar não se passava nada. O marreco não parecia acusar qualquer problema, conhecia-o muito bem.

Sendo assim, talvez aquilo tenha sido apenas uma reunião canina sobre assuntos lhes deveriam dizer respeito, nada mais.

Foi em direcção à zona da cozinha e deitou um copo com água na malga do marreco. Sentaram-se os dois junto lareira.

O Eduardo na sua habitual cadeira e o marreco, depois de saciar a sede, lá se deitou com meio corpo em cima dos pés do dono.

Eduardo, quase de imediato, adormeceu, naquelas sonolências tão rápidas que não avisam.

O marreco também estava quase a cair na simpatia de um belo sono quando – os animais têm os sentidos mais apurados que nós, nunca se esqueçam – algo de estranho parecia aproximar-se da porta.

Como não tinha hipótese de abrir a porta, foi calmamente até à outra porta que dava para as traseiras, para o quintal, e num instante rodeou a casa e lá encontrou o que lhe parecia ter sentido. Era o pulgas.

- o que estás aqui a fazer, não te disse que as conversas não podiam ser aqui!

- tem calma amigo marreco, eu vim porque não quero estar chateado contigo.

- achas bem o que disseste, a forma como me abandonaste?

- não, não acho. Não fui correcto contigo, mas já não dava para aturar aquele cão, porra!!!

- esse é um problema teu e dele, têm de o resolver, isto apesar da decisão ser da pom-pom.

- Já lhe pediste desculpa? Questionou o marreco.

- Já, mas ele não aceitou.

- Não te preocupes. Pedir desculpa é uma atitude nobre, não aceitar só demonstra o caráter do outro.

Um silêncio inundou aquela parte da casa, após um “xiu, tá calado”, “não digas nada”. O Eduardo está ali na sala, a dormitar, avisou o marreco.

- Tá bem marra, tá bem.

Nem um pio saiu da boca do pulgas, o que era uma grande conquista.

 

PS( A história, breve história, está quase a terminar. Tenham paciência, para quem lê, que o final vai ser hilariante. A propósito, não sei escrever coisas "lindas")

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte IX

05.04.24 | Bento Soares Dias

Advertência;

Esta história do Eduardo tem uma base real. Não é um mero devaneio da minha imaginação.

Goste-se ou não se goste, o que é perfeitamente aceitável, é um texto que ando a escrever há alguns anos e que no princípio nem tinha este título.

Nesse sentido, e como este espaço serve principalmente para escrever, não dando importância alguma à quantidade de comentários e/ou favoritos que os posts recebem, muito menos aos destaques do "Sapoblogs", devo ficar grato a quem perde tempo a ler esta minha escrita e, em particular, me envia comentários, bons ou maus.

A todos vós devo uma palavra de agradecimento.

Da minha parte continuarei a escrever coisas que fazem sentido para mim. E isso é o que me importa.

Um bem haja a todos.

*

Voltemos ao Ensaio

- Pessoal. Calma.

- Não vale a pena estarem a aborrecer-se. Vamos lá ter calma e ouçam--me.

- Ó marreco, interrompe a pintarolas, ou este gajo se afasta de mim, deixa-me respirar, ou vou-me embora. Já que convocaste a assembleia, impõe o respeito, senão sou eu que vou para o teu lugar!

O marreco, assim como o trovão, ficou petrificado perante a atitude da pintarolas. Nem um único som saiu daquelas bocas, nada. Limitou-se, o marreco, a pedir ao trovão que viesse um pouco mais para a frente, algo que lhe viria a sair bem caro.

- Bom, voltando ao assunto.

- A ideia é que todos nós façamos esse esforço. E tu pintarolas, já que gostas tanto de falar – o quanto lhe custou dizer aquilo – podes aproveitar e falar com o teu dono para, sem ninguém dar por nada, fazer a coisa por forma a que o Eduardo e a prima se encontrem mais vezes na mercearia.

- E como queres que consiga fazer isso, diz lá?!

- Então, basta que o teu dono retarde – melhor - venda o pão numa hora, entre a madrugada da prima e a manhã do Eduardo.

- O pão, para eles, é o “elo” na mercearia. Quanto ao café, como a prima não bebe, não me parece que seja importante, a menos que o teu dono comece a servir sopas de café, o que não seria de descartar, mesmo para o negócio.

Perante tal afronta a pintarolas não se conteve.

- Olha lá ó marreco, mas tu agora também percebes de restauração? Não achas que estás a ir um pouco além dos teus conhecimentos? O meu dono sabe, muito bem, o que faz. No entanto, e tendo em conta o bom coração que tenho vou tentar, mas apenas pelo Eduardo e pela prima, não por ti, entendes?

O trovão perdido nos seus pensamentos. – dois pontos para mim, nada para o marreco.

O pulgas e o negrão acharam que era altura de acalmar a pintarolas e, ao mesmo tempo, ajudar o seu amigo que estava desamparado, no meio de tanta conversa e maior confusão.

- Ó pintarolas, tem lá calma contigo, olha que somos todos amigos ou, se quiseres, pelo menos, conhecidos, aqui na freguesia. Não te enerves. O marreco tem alguma razão naquilo que pretende, apenas não sabe dizer as palavras certas.

Estava a discussão acesa, quando entra na assembleia a pom-pom. Toda ela era charme. Branca como a cal, de patas arranjadas, pernas depiladas e andar altivo, assim como o focinho.

- O trovão até se babou, tal o estado miserável daquele coração que parecia querer sair do peito e estatelar-se no chão.

Toda a assembleia parou para olhar aquela personagem que parecia sair de uma tela de cinema ou teatro, sabiam lá eles.

Era a pom-pom, cuja dona era uma ex-emigrante portuguesa, como tantos outros.

Ao final de trinta anos a trabalhar fora de Portugal voltou à sua terra e ali se encontrou com o seu passado, com as suas origens.

- Queira juntar-se a nós, por favor, disse o marreco.

A pom-pom, baixando a cabeça, como que agradecendo a atenção, foi sentar-se junto do negrão e do pulgas.

No fundo foi para o lado do marreco assumindo um lugar de chefia.

O negrão passou-se por completo.

- Mas o que é isto? Afinal quem é esse monte de pêlo branco que chegou agora e já quer ser secretária da assembleia?

- marreco, ou metes ordem nisto ou vamos todos embora.

O marreco já nem sabia para quem se virar e nem o que dizer. Ainda assim, lá lhe deu um brilho na mente e virando-se para o pulgas, - podes dizer à pom-pom para se sentar ali à frente de nós.

O pulgas variou. Todos conheciam os assomos dele quando ficava fora de si.

- Ó marreco, tás tonto ó quê? Achas que eu quero saber disso para alguma coisa. Quero que tu, o Eduardo, a pom-pom e esta tua assembleia se lixem.

- Olha, vou-me embora.

E foi...

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte VIII

02.04.24 | Bento Soares Dias

E foi assim que o Eduardo se transformou numa pessoa solitária, descrente do positivismo que inunda as mentes contemporâneas e, por conseguinte, dependente de carinho, de afago, de amor.

Por tudo isso, a prima era a pessoa que mais apreciava, a única pessoa lhe permitia continuar ligado a esse passado que o amarrava, mas, por outro lado, o fazia sentir seguro. Dualidades da vida.

Durante esses longos anos, após a morte dos pais, viveu só, apenas “amarrado” à sua casa e ao caminho que o levava ao outro porto seguro, a oficina.

Foi numa dessas viagens de bicicleta, a velha bicicleta, que encontrou o marreco.

Estava abandonado, assim lhe pareceu, e resolveu parar. A simbiose foi imediata: o marreco dirigiu-se ao Eduardo com os olhos semicerrados, pé-ante-pé, com a cabeça e a cauda em baixo, sinal de aceitação.

O Eduardo passou a mão pelo corpo do marreco e sentiu que aquele era um momento diferente, tal como o marreco notou.

Desde esse dia que não mais se separaram. Mas o marreco nada sabia do passado do Eduardo, como se sabe.

Talvez por isso, o marreco, em jeito de gratidão, tudo fizesse para ajudar quem o salvou.

E foi por esse acaso da vida, por esse infortúnio de duas vidas solitárias, que dois seres se juntaram e até aos dias de hoje vivem em companhia, mais que amizade, mais que compaixão, simples dependência saudável entre o Homem e o Canídeo.

Explicada que está, em jeito muito breve, o encontro de duas “almas” perdidas, seguir-se-á a continuidade da assembleia dos canídeos para tentar resolver o problema do Eduardo.

Não será fácil a discussão, posto que o problema é complexo.