A Biografia de um Morto - Parte II
- Está na hora de acordar, disse o meu colega morto de cima do meu beliche.
- Tem calma, ainda são, mas o que se passa com as horas, perguntei-me.
- Temos de ir tomar o pequeno-almoço e explorar. Cheguei ontem, como tu, mas já vi que aqui há marosca.
- Então, o que te faz dizer isso da marosca?
- Não te preocupes. Vem comigo.
Fui tomar um duche rápido. Estavam lá os outros mortos. Uns estavam a tomar duche, outros a fazer a barba e outros ainda a ver se a morte lhes tinha modificado o “look”.
Lá fui até à messe e comemos. Vejam lá se isto é comer para um morto! Uma alheira com um ovo estrelado e para acompanhar havia água, sumo ou vinho branco, servidos numa malga que mais seria para Nestum, ou outro tipo de cereal.
Como já estava habituado, nos tempos da minha vida terrena, lá comi e bebi e acompanhei o meu amigo, não sei se o seria, até ao fim da avenida que afunilava.
Eu bem desconfiei daquela avenida, mas ele foi, penso eu, mais perspicaz e lá me levou, passo após passo, até ao local onde tudo deveria acabar.
- Não tenhas medo, pá. Confia em mim. Vais ver que vou provar a todos os mortos que esta avenida que não parece ter fim, não é mais que uma nova realidade.
- Como assim? Perguntei.
- Vamos lá. E fomos.
O problema era os semáforos e as passadeiras. Sim, porque no céu existem, aprendi nesse dia, as mesmas coisas que na terra. Só que vivemos em nuvens e – viria a descobrir mais tarde – que a “coisa” tinha a ver com a forma das nuvens.
Cansados, quase duas horas a caminhar, mais não sei quantas passadeiras, lá conseguimos ao fim da avenida.
- Estás a ver. Eu bem que desconfiava.
- Ena pá. Espetacular!
Entre a nossa nuvem e a nuvem que descobrimos havia não mais que uma centena de metros.
Lembrei-me logo do Bolt. Esse fulano saltava isto num instante. O problema é que ele ainda estava vivo. É verdade que tínhamos lá muitos atletas, de todas as especialidades, mas agora já era tarde para os chamar, posto que tínhamos de fazer o caminho oposto e isso era muito cansativo, mesmo para um morto.
- Então e agora? Perguntei ao meu amigo morto.
- Agora é simples.
Assobiou. O som propagou-se pelo Além, até que um outro som, vindo do lado de lá do nosso Além, se fez chegar aos nossos ouvidos que, ainda que mortos, ouviam tão bem que mais parecia que tinham um aparelho auditivo como aquele fulano da televisão.
Enfim. De lá surgiu um outro morto que se abeirando de nós, disse.
- Caros amigos, vinde. Não são muitos os que têm a coragem para vir até à fronteira do vosso Além. Já tenho a assar o almoço para os nossos compatriotas.
Foi então que entendi que no Além só existe uma Pátria – somos todos iguais, sem diferenças de qualquer espécie. Somos todos mortos a tentar sobreviver.
E lá fomos sem ter qualquer ideia do que ia acontecer e se algum dia voltaria ao Além que me foi destinado.
- O meu amigo morto disse-me, confia.
E eu respondi. Outra vez?!? Olha que gosto pouco de aventuras. Espero que isto não nos mande para o inferno. É que aqui é tudo tão fofinho, branco e azul-celeste, menos os telhados das camaratas.
Continua…