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Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

Letras & Notas

Com os pés enterrados na areia da praia e os olhos no horizonte

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte II

29.06.23 | Bento Soares Dias

2.

Mas da sua vida, nas questões do tempo, o Eduardo não se queixava de nada. Vivia em silêncio.

Aliás, fazia tudo para que a sua vida apenas lhe dissesse respeito a ele, mais ninguém, mesmo que falasse sozinho - o que acontecia muitas vezes - era com ele que ficavam os pensamentos longos, perdidos no tempo e no espaço.

Esta forma de pensar foi, talvez, produto de umas leituras que fez.

Aprendeu na escola o suficiente para saber ler e escrever, o ofício futuro agradeceu, o que bastou para gostar de ler. Ler livros, nada de jornais que esses apenas dizem o que querem, que falassem do Tempo, do Espaço, essas coisas mais interessantes.

Os livros, mandava-os vir do Porto, através de um amigo, o Tó que trabalhava numa quinta vinhateira, ali bem perto da cidade.

Sabia o que queria e por uns mandava vir outros e foi assim que, dentro da sua casa, os livros eram reis. Invadiam o espaço e consumiam o seu tempo curto, mas pleno de ócio. Mas não era ócio, era conhecer, pensar no que lia, reflectir, olhar para o céu ou para o longe, luxo que tinha apenas quando lia, apenas à noite e por isso não via o horizonte há muito tempo, porque o horizonte não se vê à noite.

A par desse pequeno luxo, Eduardo tinha mais uma pequena mania, gostava de ouvir o som que vinha do seu pequeno rádio sempre que se sentava junto à lareira a ler os seus livros, a sua companhia.

A pequena sala estava composta. O Marreco deitado junto ao dono e o dono sentado junto à lareira. Assim passava as noites de Inverno, mas também as de Verão, apenas mudava a fonte de calor da lareira para as noites quentes do Douro.

Nessas noites, em que as estrelas brilhavam lá na imensidão do espaço, pensava, embora não quisesse, na prima. Remoía-lhe a paciência lembrar-se dela, mas não conseguia evitar – o mal foi vê-la hoje quando vinha da oficina com aquele vestido de linho branco a ondular com a brisa, naquele andar sereno e cativo – mesmo que tenha tentado fazê-lo desde o dia em que se apaixonou.

Agora era diferente, tinha de decidir, tomar uma decisão, não podia, nem queria, continuar a viver com aquele nó na garganta, com o coração apertado. A bem ver não queria ficar sozinho e o Marreco podia deixá-lo e depois como seria? Quem lhe faria companhia?

Não. Tinha que ser.

Sabia que não lhe podia oferecer uma vida rica, nem de longe, nada tinha, ou antes tinha uns terrenos deixados pelos pais, mas não lhes ligava nenhuma, eram baldios esquecidos, memórias desses tempos de produtividade da vinha onde pisaram os seus avós, seus pais e ele. Sim, ele.

Talvez por isso se tenha divorciado da terra, não tinha jeito e não queria lembrar os maus momentos que por ali passara. As vezes que, ainda miúdo, carregava a cesta colina acima até à Quinta, marcaram não só as suas costas como a sua mente.

Não, isso não quis e não pretende ter, mas existem, estão ali, mesmo ao mais pequeno esgar do seu olhar. Pode é ser um seguro para o futuro, quem sabe, e a prima poderia saber disso, assim soubesse ele que ela sabia.

Mas não sabia e nem queria entrar por aí, não queria pensar que a prima poderia vir a juntar-se a ele apenas porque tinha uns pedaços de terra para plantar vinha.

Esqueceu de imediato esse pensamento.

Agora tinha de se focar na abordagem. Era amanhã nem que tivesse de fazer algo que apenas fazia ao domingo, não ir à oficina.

Tinha de esperar, e a melhor maneira de fazer com que o tempo passasse depressa era dormir.

Durante o sono o tempo passa-nos ao lado, o tempo e os momentos. Não existe nada a não ser a doce sensação de ausência de vida, de barulho, de pessoas, de tudo, ainda que os sonhos nos queiram recordar que estamos vivos, mas dormir era a solução, o caminho, o momento, até chegar à prima.

Acordou sobressaltado, com o coração a bater tanto que pensou que ia ter algum ataque, mas como não bebia, não fumava e fazia exercício – andava de bicicleta – não se assustou muito. Rapidamente lhe veio à cabeça que era fácil pensar, o problema era falar.

Rotineiramente fez as coisas que fazia todos os dias e quando ia a sair de casa olhou, anos depois, o céu que estava azul, cheirou o ar que o envolvia todos os dias, e olhou em frente com aquele objectivo a que se tinha proposto.

Pegou na pasteleira e seguiu, estrada abaixo na direcção do café, na esperança de encontrar a prima. Era normal ela estar àquela hora junto à pequena mercearia onde todos os dias ia comprar o pão, entre outros produtos necessários.

Entrou quase a medo e sentou-se, esperando que o dono lhe viesse trazer o habitual. Reparou que ela não estava e perguntou-se porquê.

Hoje, após horas de pensamentos, de avanços e recuos na intenção, ela não estava!

Nem o naco de pão que mordiscou lhe soube bem. Saiu, pedalou e abriu o portão da oficina.

O dia estava bom, muito bom até. Sentou-se à porta e começou a olhar o infinito, como se de lá viesse a resposta que tanto queria, como se fosse do alto do céu que ela viria e lhe taparia a boca com as palavras que ele não sabia dizer.

 

Parte I: https://letraenotas.blogs.sapo.pt/a-vida-aos-bocadinhos-de-eduardo-7932 

A dois passos (parte 3ª)

24.06.23 | Bento Soares Dias

3.

Lembrou-se do momento em que viu pela primeira vez.

Ela vinha da lota, com a canastra à cabeça, num equilíbrio que só as mulheres conseguem ter, as suas saias a dar a dar, e aquele andar desenvolto. Olhou de passagem para ela e quis enviar-lhe um pequeno sorriso, mas conteve-se. Ela baixou a cabeça, fez que não o tinha visto, mas as companheiras notaram que ali havia coisa.

Os dias e meses passaram até chegar a altura em que as pessoas se aproximam mais. Era o baile de Natal e ali todos se concentravam numa pequena sala onde dançavam ao som da pequena banda.

Os convites eram feitos à distância, com um olhar, com um gesto, movimentando o indicador em círculos.

Elas, as solteiras, tinham os olhares dos pais e de toda a comunidade em cima delas. Um passo em falso e o que poderia ser apenas uma dança, transformava-se num falatório comunitário.

Mas ele não queria saber. Ia convidá-la e assim o fez. Aquela era música ideal, um slow, para estar bem juntinho a ela, mas nada de apertos, sussurrar-lhe as palavras adiadas.

Ia nervoso, a transpiração molhava-lhe a camisa de xadrez que escolheu para o baile.

Convidou-a, e ela antes de responder olhou para trás, para os pais que assentiram com um pequeno movimento de aceitação com a cabeça.

Dançaram aquela e muitas outras e as palavras adiadas foram sussurradas ao ouvido dela.

Ali nascera o namoro, o princípio de uma relação que um ano depois haveria de dar lugar ao casamento.

Recorda-se tão bem desse dia. Dela vestida de branco e ele com a sua samarra que a mãe lhe tinha comprado na Casa dos Escoceses, depois de hipotecar um fio de ouro que tinha em casa. Não tinha dinheiro, mas o seu filho não iria fazer má figura. Isse é q’era bele!

Foram viver para a casa da mãe da Maria, posto que era comum o homem abandonar o local onde viveu e mudar-se para junto da família da mulher. A tal social matriarcal, típica das terras em que as mulheres têm a seu cargo a gestão da casa, dos filhos, de tudo. Ao homem, cabe a vida do mar. A elas tudo o resto.

E foi assim que começou e foi assim que terminou.

A Maria sempre tratou dos assuntos todos e ele andava na pesca, voltava ao fim do dia e na madrugada seguinte lá ia novamente para a faina. Pelo meio, uma passagem pela taberna, onde se juntavam os companheiros da labuta da pesca.

Agora estava ali, de enxada na mão, e tudo aquilo lhe parecia ter acontecido numa outra vida, numa outra dimensão.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz do Ti Belmira e do Ti João Carlos, como se tivesse acordado de um estado hipnótico, a uma felicidade interrompida por vozes que não queria ouvir. Antes fosse ela, a sua Maria.

- Bom dia, José.

A vida, aos bocadinhos, de Eduardo

14.06.23 | Bento Soares Dias

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Nota prévia:

Antes de apresentar o primeiro trecho deste texto, originalmente chamado de Reflexões e Introspecções a esmo, permitam-me informar que qualquer texto que aqui coloque, na categoria de Ensaios, está aberto a contributos externos. Por isso, sintam-se à vontade para colaborar.

Este começou a ser escrito no dia 07 de Novembro de 2013, já lá vai uma década. Este, assim como o "A dois passos" são projectos que pretendo levar até ao fim, dependendo do tempo e da inspiração.

Enquanto vai e não vai, aqui fica a primeira parte da vida de Eduardo, mas aos bocadinhos.

*

1.

O tempo - dizia o outro - corre devagar, muito devagar, assim como se entre um segundo e o outro segundo existissem vários momentos de paragem. Se calhar tinha, ou tem, razão.

A verdade é que o Eduardo não tinha tempo. Não sabia, há muito tempo, o que era olhar despreocupadamente para a linha do horizonte, não sabia que, apesar de todo o rebuliço que lhe ia na cabeça, a vida não pára, o tempo não espera e que a sua angústia diária apenas o levava a um vazio no tempo, um limbo, um espaço oco, anti-material, nada mais.

Mas não sabia, não pensava nesse “tempo” nem por um segundo.

Interessavam-lhe mais os objectos metálicos que tinha na sua oficina, as rodas, os pneus, os carros dos clientes com o óleo para mudar. Máquinas de um tempo que não conhecia, mas que tinha de arranjar, assim sem saber quais os momentos que cada uma tinha.

Achava que um carro era, talvez com razão, o testemunho de uma vida, a vida de quem o conduzia e, assim como se fosse um cientista do tempo, tinha a absoluta convicção que os dois formavam uma unidade, uma vida, um momento, vários, muitos, segundos.

Mas esses eram os pensamentos que tinha e era com esses que queria viver, era a sua vida era o seu tempo, eram os seus momentos.

Eduardo não tinha, digamos assim, grandes preocupações. Geria a sua vida por momentos, uns atrás dos outros, tudo a seu tempo, como costumava dizer quando, nas raras vezes que frequentava o café, se encontrava com dois amigos de infância, o Tó e o Jorge.

Poucas palavras trocavam. Passavam o tempo, o pouco que dividiam, a jogar cartas, mais nada, poucas palavras, não havia tempo, as recordações de outros tempos chegavam, aos três para, sem falar, se entenderem com o olhar.

Naquele dia o Eduardo não andava lá muito em disposto, andava assim meio entorpecido, descrente talvez, mas nada de especial, era a porcaria de um pneu que ainda não tinha chegado do fornecedor e o cliente já o tinha chateado duas ou três vezes.

Isso era o pior, talvez a pior das suas preocupações, o não cumprimento dos prazos, a falha do tempo previsto, a não entrega do automóvel no tempo acordado, sob a palavra dele. Isto de depender de terceiros não era do agrado do Eduardo, preferia depender do seu tempo.

Juntou a pouca comida que levava para a oficina e no caminho ia pensando, remoendo naquela grande preocupação. Não queria chamar à atenção do fornecedor para não criar clivagens - bem falado. Por outro lado, não queria assumir a sua falta de palavra para com o cliente, mas sabia que tinha de resolver a situação.

Havia de se resolver.

Por agora pedalava na sua pasteleira, herdada do pai, a caminho do seu ninho de trabalho, o do amor sempre esteve vazio à excepção de uma paixoneta que teve, ainda nos tempos da escola primária, por uma prima.

A coisa não funcionou porque além de prima por parte da mãe o era também por parte do pai, quer isto dizer que ele era filho de um casamento entre dois primos. Portanto, fiel às suas convicções e sem tempo para pensar nestas coisas do amor, se assim se pode chamar, não a esqueceu, colocando essa paixoneta de lado apenas e só para não ter momentos de desagrado com a família, que era grande e muito próxima, já se vê.

Assim, olhava os campos sempre com atenção à estreita estrada de paralelos que faziam a sua pasteleira chiar, frutos dos longos anos que tinha e dos muitos percursos que percorrera na sua longa “vida”.

No fundo, ele e a pasteleira eram um só, uma unidade, uma equipa cúmplice do movimento temporal dos anos, meses, dias, minutos e segundos,

Mesmo quando estava na oficina a pasteleira esperava por ele, encostada a uma parede de pedra, mas com umpedaço de madeira a ampará-la para não danificar os punhos. Era assim que a queria, eterna, bonita, apesar de antiga.

Neste aspecto o Eduardo tinha razão, as coisas materiais podem não acusar os anos, assim se tratem como nos deveria tratar a vida, assim o tempo fosse para nós aquilo que é para elas, assim a morte não fosse uma certeza como é para os Homens.

Mas pronto, a vida é a vida e nas questões da morte não gostava de pensar.

Já lhe tinha morrido o pai, a mãe, os avós, apenas lhes restavam tios e os primos, entre eles, a tal prima, e o cão, o Marreco, como se chamava.

O Marreco? O Marreco vinha sempre com ele, passava o dia e a noite sempre por perto, era assim como um conselheiro, um amigo a tempo inteiro, uma companhia.

O Eduardo percebia bem os dois ditados que conhecia sobre os cães, aquele da fidelidade e o da longevidade, aquela coisa dos sete anos por cada um do homem.

- Até aqui o tempo nos coloca para trás, pensava muitas vezes. Compreender essa conta e saber que um cão com 5 anos tinha, nas contas que algum iluminado fez, afinal 35 anos, era uma chatice.

- O tempo dos cães é menor que o da bicicleta, mas maior que o nosso, pensava o Eduardo, e pensava bem, achava.

Todas estas ideias fizeram-no pensar sobre o tal tempo, aquele tempo que apenas se vê nas rugas, nos cabelos brancos, nos olhos cansados, nessas coisas da velhice, algo que ainda não lhe tinha chegado e como tal, como só tinha 30 anos, o tempo dele em relação a outros também estava desfasado.

Para casar já ia tarde, para morrer ainda era cedo...que porra de coisa, o tempo.

(continua)

 

Desenho: Bento Soares Dias

 

Duas vertentes

10.06.23 | Bento Soares Dias

Tenho de confessar que este tipo de escrita não é a minha praia, mesmo que a tenha adotado antes da outra, a tal que há mais de duas décadas e meia ando a escrever.

Confesso que ambas são complexas, mas esta é bem mais complicada, posto que exige aquilo a que eu chamo de “momento”.

O “momento” em que pelos nossos dedos escorrem os pensamentos, as emoções, as “coisas todas” que nos fazem escrever. E são tantas e tão dificeis, pelo menos para mim, de articular.

A outra escrita - a científica - mais fechada dentro do seu mundo, não permite essa liberdade, essa evocação dos espíritos que habitam nos nossos pensamentos. Obriga a criar um qualquer texto que acrescente algo de novo a uma qualquer área da ciência.

Já dizia um meu antigo professor de faculdade que “a investigação não é mais que o conhecimento das fontes e, claro, as ilações que o investigador tira das mesmas.”

Assim se nota a “prisão” desse tipo de escrita e a liberdade da outra, aquela que humildemente vou escrevendo neste espaço.

Neste caminho aprendo imenso com os escritos de outros blogs e não é rara a vez que leio textos de grande valor.

No entanto, uma e outra  são produções laboriosas mas existe uma que, na minha opinião, se assume como verdadeiramente libertadora e não é a científica.

A dois passos (parte 2ª)

06.06.23 | Bento Soares Dias

2.

Começou.

Limpou todo o terreno, já com a ajuda do filho mais velho, lixo, mais lixo, tudo fora. Aquele terreno estava sem ser mexido desde o último dia em que a sua mulher lá trabalhou, as ferramentas que ela usava estavam arrumadas no mesmo local que ele sempre conhecera e por lá se iriam manter após o trabalho.

Um santuário era o que era, a dois passos da mulher. Assim pretendia continuar a tratar da terra, do santuário.

Meteu as mãos calejadas pela vida do mar no cabo da enxada e a primeira machada foi como uma libertação, uma fusão de raiva e contentamento, tinha reencontrado o seu novo destino, ali a dois passos da sua Maria.

O filho, a seu lado, ajudava-o. Rapaz forte, trabalhador e lutador, como o pai sempre foi e a mãe o cultivou.

Os dois sozinhos a ferir a terra. Sentiam-se bem, desbravando aquelas entranhas que a mãe tinha deixado secar com a doença que a levou.

A mãe era uma pessoa conhecida, popular, nascida e criada no meio agrícola, filha da Pederneira, que sempre resistiu às tentações de uma praia cheia de gente, como se corresse ouro pela areia.

Nas suas veias corria o sangue de gente do campo. Gente humilde, gente pobre e, no mesmo terreno onde os seus pais e os seus avós trabalharam, se manteve até ao último dia em que as forças a deixaram cravar uma enxada na terra dura.

Ela sabia que o seu marido andava na labuta do mar e quantas vezes espreitava o “come barbas”, pedido à Senhora da Nazaré que protegesse o seu amor, o seu homem. No final do dia, quando se encontravam em casa, eram as conversas dos outros e deles que animavam o serão à volta de uma pequena, e baixa, mesa de madeira onde comiam o que havia. Não havia bancos e muito menos cadeiras.

E assim se passaram duas dezenas de anos de convivência, assim se escreveu uma história, assim se construiu uma família.

Um dia, de volta a casa, a mulher queixou-se de uma dor nas costas, coisa pouca mas que a apoquentava. Não ligou e disse-lhe que era do trabalho, que eram muitas horas sempre agachada e a cavar.

Acreditou, era possível, porque não?

Mas a dor, dia após dia, piorava e não a deixava ter força, quebrando-lhe os movimentos.

Não durou dois meses e morreu. Com ela morreu uma casa e na casa que ela habitava ficavam agora três vidas por viver.

A morte de um ente querido deixa marcas profundas, sentimentos em redemoinho e a dor, essa não se esvai.

A contra-natura da morte custa mais, mas a morte de uma pessoa jovem com uma família para criar, também tem a sua conta de dor. A morte, se pudéssemos escolher não existia.

Mas aconteceu e continua a sentir-se no seio daquela, agora amputada, família.

Após a hora da morte da mãe, foi o filho mais velho que pegou no irmão e o levou para casa do vizinho.

O pai, avisado, quando estava a trabalhar na praia, não soube como chegou à Pederneira.

Nada que não o andasse a apoquentar. Via a sua mulher a definhar, dia após dia, mas a morte. A morte, essa não. Como se lida com a morte, não se sabe, só quem passou por momentos destes, é que sabe como se lida com a morte de alguém jovem, querido e um pilar de uma família.

Chegou a casa sem forças nas pernas e com os olhos vermelhos de tanta revolta, de tanto chorar. Várias pessoas estavam à porta, de cabeça baixa, ainda assim o olhavam pelo lado superior dos olhos, sem mexer a cabeça. Nem uma palavra, apenas suspiros, ais, silêncio, nada mais.

Quando entrou em casa notou um cheiro diferente, um cheiro a morte e continuou em frente até ao pequeno quarto onde jazia a sua Maria, apenas iluminada por uma pequena fresta que deixava entrar uma réstia da luz daquele dia negro.

Passou-se tudo naquele momento, o choro, as lembranças a impossibilidade de ser ela, tudo, tudo se passou, mesmo a razão de estar ali.

Mas não. Era tudo verdade, era ela que estava ali deitada, coberta por uma colcha branca, colcha que o tinha aconchegado a ele e a ela nessa mesma noite, antes de ir para a praia trabalhar, aquela cama, onde trouxeram ao mundo os seus filhos, tudo, mas tudo, era agora um espaço diferente um pouco mais escuro, sem brilho, sem importância, sem história.

Aproximou-se da sua mulher, olhou-a fixamente, não nos olhos que esses estavam cerrados, mas na face e percorreu todo o seu corpo, oculto pela coberta branca, como se lhe estivesse a tirar as medidas, como o fez na primeira vez que a viu.

Mas agora era diferente, a despedida daquele corpo, daquela voz, daqueles olhos, era agora uma realidade. Isso, ele não poderia mudar.

A dois passos (parte 1ª)

04.06.23 | Bento Soares Dias

1.

Acordara cansado, talvez pelo dia de ontem, não sabe, mas sentia-se cansado sem vontade de nada fazer, apenas ficar em casa.

Olhou em volta, e no meio daquela pequena divisão ainda dormiam os seus dois filhos, serenos, como que santificados e alheados das dificuldades da vida dura que lhes levava o pão à boca.

A sua companheira já tinha partido, fazia pelos Passos dois anos, e nunca mais conseguiu ser o mesmo. 

Os filhos notavam, embora pequenos, a quebra da mesma força que sempre acompanhou e impulsionou o pai.

Mas tinha de reagir, afinal não era isso que sempre o motivou a sair de casa, descer a ladeira e trabalhar na praia junto dos colegas que tinha, embora nem todos fossem seus amigos?

Para que é que um homem quer amigos quando não tem a sua companheira, quando vê a sua vida desmoronar-se de um momento para o outro?

Mas, naquela manhã, as coisas eram diferentes, a sua força parece que o tinha abandonado definitivamente. Sentia que nada, nem ninguém, o podia ajudar. Nem mesmo o amor que sentia pelos filhos e, no extremo, a Senhora da Nazaré, a quem pedia todos os dias pelos filhos, pelo pão que havia de vir desse maldito mar.

O filho mais velho acordou, com 14 anos já percebia o que se passava, e bastou olhar para o pai para perceber que mais um dia de escuridão se tinha abatido na sua alma.

Nada lhe disse, apenas o olhou, de frente, e sentiram os dois aquele sentimento de saudade, de falta, mas que podiam fazer contra a determinação de Deus?

Alguns minutos mais tarde acordou o mais novo, 6 anos, quatro deles com a mãe, os menos memoráveis, aqueles que se recordava como se estivessem envoltos numa penumbra, apenas a fotografia numa moldura em cima da cómoda do quarto o fazia lembrar de pequenas coisas.

Em silêncio continuaram a fazer a sua rotina matinal. Um pouco de pão e leite da vizinha que tinha duas vacas na sua horta e dava de leite à maior parte da população, pouco, mas lá se ia aviando, a vizinha e os clientes.

Naquela altura a Pederneira era uma terra deserta, sem almas nas ruas, mas com muitas no cemitério. Sempre esse caminho, o do cemitério, que percorriam todos os dias, sem falta, para visitar o chão onde se encontrava a mãe.

A escola era já ao cimo da rua e o mais velho, que já a tinha abandonado para ajudar nas despesas da casa, levava o irmão, esperança da família para que o futuro lhes fosse mais risonho.

Depois voltava e juntava-se ao pai na caminhada para a praia onde iriam passar o dia até voltarem, mais tarde, para a sua casa.

Não havia distracções apenas o trabalho e a casa.

O pai esperou que o filho chegasse de levar o irmão à escola para o arrastar para baixo. A muito custo, porque a alma prendia-lhe os movimentos.

Lá foi. A necessidade falou mais alto no início de mais um dia que não estaria destinado a ser, assim ele pudesse dar-se ao luxo de ficar na porta da sua casa a olhar, bem de frente, a torre da igreja matriz e esperar que as horas passassem às badaladas do sino.

O caminho foi feito em silêncio, nem uma palavra, apenas pensamentos que assaltavam os dois. Um pelos motivos da perca, por não perceber porque Deus lhe tinha tirado a sua companheira. Outro, a pensar porque tinha um pai distante e uma mãe que não sobrevivera a uma doença sem cura, apesar do médico da terra ter feito de tudo e, sem o médico saber, terem recorrido às práticas tradicionais para afastar aquela terrível doença que consumiu o outrora vivo corpo da mãe.

Que haviam de fazer, nada ou tudo.

No areal já labutavam as pessoas, elas, eles, as redes, os barcos, os bois, tudo era movimento, tudo era barulho, nem o barulho do mar se conseguia ouvir com o barulho da areia pisada e repisada por tantos seres.

Não. Aquilo não era vida para ele, tinha de tomar uma decisão, tinha de estar perto da sua mulher, pensou. Quanto mais o pensou mais depressa o fez.

Agarrou o filho pelo braço e, sem nada dizer, inverteu o seu destino arrastando com ele o destino do filho, o destino de três vidas.

Um homem tem de tomar decisões e a única força que ainda lhe restava estava virada para terra e não para o mar. Desse estava cansado, nem o podia ouvir murmurar ao longe, mesmo quando estava em casa.

Subiram novamente a ladeira e chegaram à Pederneira, o filho não sabia ao que ia, mas não perguntou. Deixou-se ir como se de uma sentença se tratasse e nem pestanejou perante a força, estranha, do pai.

Parecia que tinha sido possuído por uma vontade estranha, por um chamamento. Mas não, apenas seguia o seu instinto, levado pela proximidade e pela vontade de não mais pisar aquele areal. Queria outras areias, mais duras, mais castanhas, mais perto, a dois passos.

Dois passos chegavam, desde que o levassem onde jazia a sua mulher. Era a dois passos que tinha um pequeno talhão de terra, era a dois passos que iria reconstruir a sua vida e dar aos filhos, aquilo que mais desejavam, um pai.

Parou, olhou em volta apreciando a paz, a calma e o trabalho que o esperava até ter aquela terra pronta para a sementeira. Olhou para o filho e, como se lhe dissesse com as palavras todas do mundo aquilo que lhe ia no coração, apertou-lhe a mão chorando de alegria, de orgulho, dando graças a Deus por ter o seu filho com ele, aquele homem a formar-se.

Cedo iria chegar a hora de almoço, o irmão mais novo estava na escola, mas era perto, a dois passos.

Almoçaram aquilo que havia para almoçar, pouca coisa, já estavam habituados a pouca fartura, mas a alma alimenta-se com a fé, dizem os que a professam, e eles acreditavam e isso era o suficiente.

Não esperou muito, disse para o mais velho para ir ter com ele à terra, ali a dois passos.

Meteu-se ao caminho, curto, e ao passar pela Matriz e pela Misericórdia benzeu-se, agradecendo a luz que se tinha feito na sua vida, ou talvez, quem sabe, a ilusão que estava a viver. Não se incomodou, por enquanto, com o facto de a terra ser diferente do mar, sempre tinha o mercado e um homem não come só peixe, batatas também são precisas.

Os outros estavam já nas suas tarefas, semeando as suas terras, mas eram-lhe estranhos, embora os conhecesse a vida inteira, mas o estranho era ele, por ali àquela hora, com uma enxada às costas?

Perguntavam-se os que o viam passar. Em silêncio faziam-lhe todas as perguntas, mas nada lhe dizia, sabiam aquilo que lhe ia no peito e não diziam, não falavam, mas respeitavam, a sua condição, a sua dor.

Tanta memória que a mulher lhe trazia, era nessa memória que se ia apoiar para ferir a terra, para a fazer sangrar o pão para comer, era essa terra, a dois passos, que reavivava a mulher, afinal era o que ela fazia durante o tempo em que andou no mundo dos vivos.