A vida, aos bocadinhos, de Eduardo - parte II
2.
Mas da sua vida, nas questões do tempo, o Eduardo não se queixava de nada. Vivia em silêncio.
Aliás, fazia tudo para que a sua vida apenas lhe dissesse respeito a ele, mais ninguém, mesmo que falasse sozinho - o que acontecia muitas vezes - era com ele que ficavam os pensamentos longos, perdidos no tempo e no espaço.
Esta forma de pensar foi, talvez, produto de umas leituras que fez.
Aprendeu na escola o suficiente para saber ler e escrever, o ofício futuro agradeceu, o que bastou para gostar de ler. Ler livros, nada de jornais que esses apenas dizem o que querem, que falassem do Tempo, do Espaço, essas coisas mais interessantes.
Os livros, mandava-os vir do Porto, através de um amigo, o Tó que trabalhava numa quinta vinhateira, ali bem perto da cidade.
Sabia o que queria e por uns mandava vir outros e foi assim que, dentro da sua casa, os livros eram reis. Invadiam o espaço e consumiam o seu tempo curto, mas pleno de ócio. Mas não era ócio, era conhecer, pensar no que lia, reflectir, olhar para o céu ou para o longe, luxo que tinha apenas quando lia, apenas à noite e por isso não via o horizonte há muito tempo, porque o horizonte não se vê à noite.
A par desse pequeno luxo, Eduardo tinha mais uma pequena mania, gostava de ouvir o som que vinha do seu pequeno rádio sempre que se sentava junto à lareira a ler os seus livros, a sua companhia.
A pequena sala estava composta. O Marreco deitado junto ao dono e o dono sentado junto à lareira. Assim passava as noites de Inverno, mas também as de Verão, apenas mudava a fonte de calor da lareira para as noites quentes do Douro.
Nessas noites, em que as estrelas brilhavam lá na imensidão do espaço, pensava, embora não quisesse, na prima. Remoía-lhe a paciência lembrar-se dela, mas não conseguia evitar – o mal foi vê-la hoje quando vinha da oficina com aquele vestido de linho branco a ondular com a brisa, naquele andar sereno e cativo – mesmo que tenha tentado fazê-lo desde o dia em que se apaixonou.
Agora era diferente, tinha de decidir, tomar uma decisão, não podia, nem queria, continuar a viver com aquele nó na garganta, com o coração apertado. A bem ver não queria ficar sozinho e o Marreco podia deixá-lo e depois como seria? Quem lhe faria companhia?
Não. Tinha que ser.
Sabia que não lhe podia oferecer uma vida rica, nem de longe, nada tinha, ou antes tinha uns terrenos deixados pelos pais, mas não lhes ligava nenhuma, eram baldios esquecidos, memórias desses tempos de produtividade da vinha onde pisaram os seus avós, seus pais e ele. Sim, ele.
Talvez por isso se tenha divorciado da terra, não tinha jeito e não queria lembrar os maus momentos que por ali passara. As vezes que, ainda miúdo, carregava a cesta colina acima até à Quinta, marcaram não só as suas costas como a sua mente.
Não, isso não quis e não pretende ter, mas existem, estão ali, mesmo ao mais pequeno esgar do seu olhar. Pode é ser um seguro para o futuro, quem sabe, e a prima poderia saber disso, assim soubesse ele que ela sabia.
Mas não sabia e nem queria entrar por aí, não queria pensar que a prima poderia vir a juntar-se a ele apenas porque tinha uns pedaços de terra para plantar vinha.
Esqueceu de imediato esse pensamento.
Agora tinha de se focar na abordagem. Era amanhã nem que tivesse de fazer algo que apenas fazia ao domingo, não ir à oficina.
Tinha de esperar, e a melhor maneira de fazer com que o tempo passasse depressa era dormir.
Durante o sono o tempo passa-nos ao lado, o tempo e os momentos. Não existe nada a não ser a doce sensação de ausência de vida, de barulho, de pessoas, de tudo, ainda que os sonhos nos queiram recordar que estamos vivos, mas dormir era a solução, o caminho, o momento, até chegar à prima.
Acordou sobressaltado, com o coração a bater tanto que pensou que ia ter algum ataque, mas como não bebia, não fumava e fazia exercício – andava de bicicleta – não se assustou muito. Rapidamente lhe veio à cabeça que era fácil pensar, o problema era falar.
Rotineiramente fez as coisas que fazia todos os dias e quando ia a sair de casa olhou, anos depois, o céu que estava azul, cheirou o ar que o envolvia todos os dias, e olhou em frente com aquele objectivo a que se tinha proposto.
Pegou na pasteleira e seguiu, estrada abaixo na direcção do café, na esperança de encontrar a prima. Era normal ela estar àquela hora junto à pequena mercearia onde todos os dias ia comprar o pão, entre outros produtos necessários.
Entrou quase a medo e sentou-se, esperando que o dono lhe viesse trazer o habitual. Reparou que ela não estava e perguntou-se porquê.
Hoje, após horas de pensamentos, de avanços e recuos na intenção, ela não estava!
Nem o naco de pão que mordiscou lhe soube bem. Saiu, pedalou e abriu o portão da oficina.
O dia estava bom, muito bom até. Sentou-se à porta e começou a olhar o infinito, como se de lá viesse a resposta que tanto queria, como se fosse do alto do céu que ela viria e lhe taparia a boca com as palavras que ele não sabia dizer.
Parte I: https://letraenotas.blogs.sapo.pt/a-vida-aos-bocadinhos-de-eduardo-7932